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Artigo: A proteção da infância em ambiente digital: competência territorial e cooperação internacional como eixos da resposta estatal
Por Diego Roberto Barbiero. Promotor de Justiça no MPSC | Diretor da Escola do MPSC | Ex-Coordenador do CyberGAECO (2023–2025)
A criminalidade virtual contra crianças e adolescentes, especialmente na forma da extorsão sexual virtual (sextorsão), impõe desafios sem precedentes à persecução penal contemporânea. Não se trata de um fenômeno inteiramente novo. O que se percebeu nos últimos anos foi o fortalecimento da capacidade institucional de descortinar casos antes invisíveis, muito em razão da atuação de equipes especializadas e à consolidação de parcerias estratégicas com o setor privado – diretriz, aliás, já anunciada no preâmbulo da Convenção de Budapeste, ao reconhecer a necessidade de cooperação entre o Estado e a indústria para o enfrentamento do cibercrime.
Foi nessa perspectiva que, entre abril de 2023 e abril de 2025, o CyberGAECO de Santa Catarina estruturou investigações complexas com fluxos de atendimento às vítimas e preservação probatória alinhados às melhores práticas.
Operações como a Pessinus tornaram públicos esquemas em que adolescentes eram aliciadas, chantageadas e coagidas a expor sua intimidade; em alguns episódios, a violência psicológica e a humilhação reiterada culminaram em autolesão e incentivo ao suicídio e a maus tratos a animais. A operação demonstrou que, em comunidades virtuais, adolescentes eram desafiados constantemente a adotar determinadas condutas para crescer em pseudo-estruturas virtuais, o que incluía práticas que atingiam diretamente suas dignidades sexuais e que se equiparam a crimes como constrangimento ilegal, ameaça, estupro "virtual" e outras tantas formas de violência psicológica – evidência de que a exposição e o risco de danos à saúde mental são parte do próprio iter criminis desses delitos on-line.
Nesse horizonte, a Convenção de Budapeste sobre o Cibercrime se impõe como marco normativo e cooperativo global. Assinada em 23 de novembro de 2001, em Budapeste, e em vigor desde 1º de julho de 2004, a Convenção foi o primeiro tratado internacional vinculante dedicado ao cibercrime, concebido para harmonizar legislações e estabelecer mecanismos de cooperação voltados à obtenção de provas eletrônicas.
O Brasil depositou o instrumento de adesão à Convenção em 30 de novembro de 2022, 1 ano e 6 meses após o episódio de Saudades-SC (em 4 de maio de 2021, 3 crianças e 2 professoras tiveram suas vidas interrompidas por um agressor), quando o cenário de enfrentamento de atos de violência em ambiente escolar já alcançava um patamar antes inimaginável.
Internamente, a Convenção foi promulgada pelo Decreto nº 11.491, de 12 de abril de 2023, ou seja, uma semana após o caso de Blumenau-SC (em 5 de abril de 2023, 4 crianças foram vitimadas), quando o país vivia uma epidemia de ameaças, difundidas online, sobre possíveis ataques em escolas e em locais de concentração pública.
Foi a partir daquele momento que o país passou a integrar uma comunidade de dezenas de Estados comprometidos com parâmetros comuns de investigação e assistência mútua em crimes que, por natureza, transbordam fronteiras e ordenamentos.
Duas décadas de transformação tecnológica, porém, evidenciaram limites do texto original da Convenção de Budapeste. A migração da vida social para plataformas privadas globais, a volatilidade dos metadados e a efemeridade de registros digitais (logs) criaram um descompasso entre a urgência da prova e os naturais entraves da cooperação tradicional. Para otimizar as formas de obtenção de dados imprescindíveis às investigações, foi negociado e aberto à assinatura, em 12 de maio de 2022, o Segundo Protocolo Adicional à Convenção de Budapeste, voltado à cooperação aprimorada e à obtenção de evidência eletrônica.
O Segundo Protocolo Adicional introduz, entre outras inovações, (i) formas de cooperação direta com provedores estrangeiros para dados de assinante; (ii) procedimentos simplificados governo a governo para dados de assinante e, em hipóteses específicas, dados de tráfego; (iii) pedidos diretos a registradores de nomes de domínio; (iv) mecanismos de preservação expedita em situações de emergência (com risco iminente de perda de evidência ou perigo à vítima); (v) canais 24/7 e equipes conjuntas de investigação; e (vi) um sistema de salvaguardas de direitos humanos e proteção de dados, com controles de necessidade, proporcionalidade e supervisão.
O ganho prático é inequívoco: a novidade mitiga a dependência exclusiva de MLATs (Mutual Legal Assistance Treaties) – a via clássica de assistência jurídica mútua, robusta porém lenta se considerado o dinamismo do crime virtual – encurtando prazos decisivos para a preservação de logs, a identificação do agressor e o resgate da vítima ainda em situação de perigo.
A adesão global ao Protocolo reforça a vocação extrainstitucional do Conselho da Europa. Entre os não membros do Conselho da Europa que assinaram o instrumento já na abertura ou em seguida, citam-se Estados Unidos, Japão, Chile, Colômbia e Marrocos; ao longo do processo, países latino-americanos como Paraguai, Argentina e Peru avançaram para a ratificação, consolidando a rede de cooperação também fora da Europa e aproximando geograficamente o Brasil de parceiros com realidades investigativas semelhantes.
No plano doméstico, há um segundo pilar igualmente urgente: ajustar a competência territorial para dar segurança jurídica e celeridade às investigações de crimes sexuais on-line contra crianças e adolescentes.
O art. 70 do Código de Processo Penal fixa a competência pelo lugar da infração – diretiva adequada a delitos fisicamente localizados, mas de difícil aplicação em contexto digital com vítimas definidas. Em sextorsão, a localização do agente é frequentemente incerta ou dissimulada: VPNs, proxies, redes de anonimização (Tor) e hospedagens em cascata em múltiplas jurisdições são usados para ocultar IP, origem e identidade, tornando problemático determinar “onde” o ato se consumou para fins de competência. O resultado são conflitos negativos, remessas de investigações embrionárias às instâncias superiores e um hiato temporal que custa caro à vítima e à prova.
O impacto prático dessa indefinição é mensurável: cada hora de dúvida sobre o foro competente pode significar a perda de registros efêmeros, a não preservação de dados mantidos por provedores (que seguem políticas de retenção limitadas) e a permanência do risco à vida das vítimas. Daí a necessidade de uma regra especial de competência que estabilize desde o primeiro ato – e nada é mais coerente com o sistema de garantias do que fixar a competência no domicílio da vítima.
A solução tem apoio constitucional e infraconstitucional. O art. 227 da Constituição da República consagra a prioridade absoluta dos direitos da criança e do adolescente; o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seus arts. 3º e 4º, explicita a proteção integral e o princípio da intervenção precoce, reafirmando que a prioridade compreende a primazia da criança e do adolescente receberem proteção e socorro em quaisquer circunstâncias.
Fixar a competência no foro da vítima não é um privilégio processual: é instrumento de efetividade para que a rede local de proteção – Conselhos Tutelares, Centros de Referência em Assistência Social (CRAS), órgãos das secretarias de saúde e educação – seja acionada imediatamente, permitindo medidas cautelares não só no plano investigativo, imprescindíveis para a rápida identificação do agressor, como, também, sob o aspecto de preservação da vida e da dignidade, com acolhimento psicossocial e oitiva especializada.
A dimensão operacional também recomenda o ajuste. Uma regra clara reduz litígios de competência, evita a circulação de investigações entre comarcas (o que amplia a possibilidade de fragilização do sigilo imprescindível à proteção probatória), facilita a logística de diligências e ameniza a revitimização – porque evita deslocamentos e repetição de depoimentos em locais distintos. Além disso, fortalece a atuação coordenada de Polícia Judiciária, Ministério Público e Poder Judiciário, melhora o tempo de resposta para ordens de preservação e cooperação com plataformas, e estabiliza a instrução probatória desde a origem.
E não se trata de inovação extravagante no sistema. O legislador brasileiro já reconheceu as especificidades da criminalidade digital ao alterar o art. 70 do Código de Processo Penal pela Lei nº 14.155/2021, para estelionato praticado por meio eletrônico, fixando no domicílio da vítima o foro competente. A ratio é idêntica – dificuldades de territorialização, dispersão de atos e risco de impunidade – e torna-se ainda mais premente quando o bem jurídico tutelado é a dignidade e a liberdade sexual de crianças e adolescentes, cujo estatuto constitucional é de prioridade absoluta.
A uniformização jurisprudencial é outro ganho. Hoje, há decisões divergentes sobre a competência em crimes sexuais on-line, inclusive com variações intrajurisdicionais. Uma regra expressa no Código de Processo Penal reduz assimetrias interpretativas, confere previsibilidade às partes, segurança aos órgãos de persecução e confiança social na capacidade do sistema de Justiça de entregar proteção efetiva no tempo devido.
Somando-se os dois movimentos – (i) a fixação da competência no domicílio da vítima e (ii) a adesão do Brasil ao Segundo Protocolo Adicional à Convenção de Budapeste – obtém-se um circuito virtuoso entre celeridade interna e efetividade internacional. No plano interno, define-se rapidamente quem decide e quem investiga; no plano externo, abre-se a porta para o acesso imediato a dados e preservação de evidências além-fronteira, com salvaguardas e controle.
Em crimes sexuais on-line, o atraso investigativo pode ser o divisor entre a preservação da vida ou o consenctimento tácito com seu perecimento; entre o desenvolvimento de uma infância e adolescência sadia ou a formação de cicatrizes e traumas que acompanharão a vítima por toda sua existência. A atualização dos marcos internos (competência) e a inserção nos mecanismos globais (Segundo Protocolo) são passos complementares e urgentes para que o Estado cumpra, com eficácia, o comando constitucional de proteção integral e prioridade absoluta.
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